Críticas de Cinema

Críticas de minha autoria, publicadas no jornal da ESPM, na coluna de cinema.


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ÚLTIMA PARADA 174
“Got to lose control and then you take control” (Patti Smith)

Um drama de um jovem que cresceu em meio a bandidagem, fruto do morro carioca e das ruas em que dormiu. Lembra alguma coisa? Tantas, na verdade. Mas não deixa de ser real. Não houve uma grande resposta positiva à notícia do filme brasileiro escolhido para disputar o Oscar. Mais um com foco na violência urbana carioca estaria em busca de reconhecimento internacional, depois da overdose Tropa de Elite, as glórias de Cidade de Deus e tantos outros documentários, em parte, bem realizados e aclamados, como o próprio Ônibus 174 de José Padilha. Um círculo que liga o Última Parada 174 a José Padilha, e este à Tropa de Elite, que por sua temática se une a Cidade de Deus, assim como Bráulio Mantovani é roteirista tanto de Cidade quanto de Última Parada. Todas essas conexões levavam a crer na repetição para além da temática.

Diminuindo o foco da lente de José Padilha, Bruno Barreto pega o desfecho trágico da história de Sandro, nacionalmente conhecido como o rapaz que seqüestrou um ônibus e esteve sob as lentes massivas da TV, e parte do fim para um miolo também conhecido, o de que este mesmo Sandro foi um dos sobreviventes de outra tragédia particular carioca, o massacre da Candelária. O esforço de amarração dos causos ficou por conta de reconstruir ficticiamente as lacunas na vida de Sandro que não foram exibidas na TV. Um Sandro que teve liberdade de ser quem bem entendesse tanto em sua vida quanto nas telas, rejeitando tipos e julgamentos da massa redeglobal. O roteirista costura bem a trama e convence com um típico anticonvecionalismo, deixando pro fim a esperança sempre esperada depois do peso jogado nos ombros do espectador.

Então Sandro ganha o apoio narrativo de uma mãe chamada Marisa, desenhando sua participação na perda de seu único filho, Sandro, para o traficante local em pagamento de uma dívida de drogas. Assim, o roteiro começa a ligar os dois personagens e enquanto Marisa se distancia do filho, Sandro distancia-se da mãe de maneira brusca. Um jogo de gato e rato dá movimento ao filme, com a mãe atrás do filho, do filho em busca de alguém pra chamar de mãe e o cruzamento dos destinos de Sandro e Alessandro, que sem saber possuem uma irmandade de condição muito mais forte que a consangüínea.

O atores foram escolhidos entre as várias iniciativas de teatro em comunidades da periferia carioca, outra ligação com os filmes de Padilha e Meirelles. Configurou-se tão bem à produção que Bruno Barreto alfinetou a super exposição midiática que os atores já consagrados vêm sofrendo, ocasionando um desgaste na imagem e na construção de personagens. A história dos atores conhecidos todos já sabem. A história das vítimas do Ônibus 174 todos já ouviram. A história de Sandro todos já julgaram.

Embora se trate de uma ficção baseada em fatos reais, a sensação de uma reportagem é forte, como nos programas policiais de fim de tarde na televisão, sobre a mãe que perde um filho e o filho que perde a mãe. Ninguém ali parece estar representando, os não-atores e a pouca experiência justifica um extremo realismo das cenas.

A reunião dessas boas e convincentes interpretações com a fotografia também competente de Antoine Herbelé e o trabalho do roteirista garantem alguma qualidade que, se não imita seus antecessores em linhagem direta, também não agrega novidades.

Última Parada 174 não é um filme de bem ou mal, apenas mais um filme sobre a violência carioca. Conta, com alguma crueza e não-adjetivos, o cotidiano de famílias pobres e desestruturadas, num limite entre a vida e a morte, entrando na intimidade dos morros cariocas tão conhecida apenas através das telas.

Não há como saber o que é causa e o que é efeito da violência em que os personagens vivem. O seqüestro do ônibus, que tanto chocou milhões de telespectadores, foi para Sandro apenas o desfecho natural de uma trajetória, apenas mais um escolha. Não há opinião no filme. Não há nenhuma mensagem retocada tentando criar julgamento e muito menos uma análise sociológica. Há apenas um bom filme.

OS DESAFINADOS
“Se você insiste em classificar
meu comportamento de anti-musical, eu mesmo mentindo devo argumentar
que isto é bossa-nova, isto é muito natural” (João Gilberto)

Muitos gostariam de ter vivido em épocas passadas, durante as revoluções, guerras, golpes, cenas musicais e outros tantos movimentos em prol da cultura e liberdade. Muitos sentem saudade de um tempo não vivido, um passado ideal. Nos tempos de hoje, a nostalgia é atrativo comercial: cada vez mais produtos que resgatam uma aura de anos passados são lançados no mercado e vão criando uma nova categoria de bens de consumo. O passado é cool. Seguindo esse pensamento, nada mais natural que um filme para celebrá-lo. Em Os Desafinados, aquilo que teria de melhor para nos oferecer, a nostalgia dos tempos Bossa Nova, é relegada a pano de fundo: Walter Lima Jr., o diretor, diz ter feito um filme sobre a amizade.

Na condução da narrativa há um diálogo entre passado e presente. Nos dias atuais, a morte da cantora brasileira Glória (Claudia Abreu) na Itália serve como pretexto para a realização de um documentário sobre uma banda chamada Os Desafinados, Joaquim (Rodrigo Santoro), Davi (Ângelo Paes Leme), Geraldo (Jair Oliveira) e PC (André Moraes). No passado, a banda, acompanhada do aspirante a cineasta Dico (Selton Mello), decide viajar por conta própria a Nova York depois de não conseguirem entrar na lista de um aguardado show no exterior. Joaquim, que conseguiu viajar graças ao dinheiro emprestado por sua mulher grávida (Alessandra Negrini), se apaixona por Glória. Cantora, ela acaba não apenas alojando o músico e seus amigos em seu apartamento, como também assumindo os vocais do grupo. Quando retornam ao Brasil, confrontam muitas mudanças. A ditadura se instaurou e todas as manifestações de arte ficaram sob as garras da censura. É quando o romantismo da Bossa Nova cai por terra, para dar lugar à dureza.

Entretanto, vemos tudo isso à distância. Não nos sentimos envolvidos com a época, os chamados Anos Dourados, marco na história cultural brasileira, fundamental para diversas gerações musicais que surgiram no país desde então. São muitos anos, muitas vidas, muitas histórias em apenas 2 horas e poucos minutos. Tudo isso pontuado por diálogos pouco interessantes, referências históricas de forma bastante artificial e cenas desnecessárias. As imperfeições de som, uma discutível opção pela dublagem e a má equalização durante os trechos musicados chamam a atenção. Falando em ruído, há a direção de atores atuando pesado no começo do filme, como mímicos, pra ter certeza que a câmera vai pegar o gestual.

Esta abordagem talvez fosse justificada pelo fato do diretor privilegiar a história dos amigos em relação aos acontecimentos do período, apesar de não sentimos deveras tal envolvimento com os personagens. “Essa coisa de Bossa Nova tem muito ‘inho’. É barquinho, banquinho, tardinha… tem que dar um sacode nessa bossa!” diz Dico, em momentos únicos de proximidade em cena. Há uma sensação de estranhamento: o estilo que Lima Jr. emprega é ultrapassado ou nós que nos habituamos com outro tipo de cinema? Por que sair cantando pelos cantos parece tão forçado?

“Quando comecei a fazer cinema, queria documentar tudo aquilo que eu estava vivendo, então este filme foi se acumulando dentro de mim ao longo desses anos” disse Lima Jr. após a exibição do longa em sessão especial na Universidade Estácio de Sá. “Eu morava em Niterói e estava sempre com músicos da cidade, como Sérgio Mendes e Tião Neto. Lembro que ficava impressionado com as histórias deles, que tocaram no histórico show da Bossa Nova em Nova York. Muitas frases no filme são coisas que eles diziam”. Diversos episódios reais serviram de inspiração ao diretor, como a repressão a um show de protesto no final da década de 60, numa faculdade no Rio de Janeiro, e o desaparecimento de um músico brasileiro na Argentina em pleno golpe, que saiu para comprar cigarros e nunca mais foi encontrado.

Quando Os Desafinados estão no inverno nova-iorquino, sentem falta de casa. Quando voltam ao Brasil, sentem falta do que deixaram incompleto por lá. São homens divididos em dois mundos – duas mulheres, duas cidades, dois instrumentos, dois sonhos. Não só eles são divididos, como também o filme, feito de retalhos de musicos dançando com violões em punho, na chuva, em aeroportos. Os temas mudam, as subtramas sobem, as fusões visuais do passado e do presente se intensificam. Já se sabe o que esperar do fim.

O filme levou um longo tempo para chegar às telas por razões pessoais e práticas, o que inclui certamente a arrecadação de orçamento. Este ano, o filme participou de diversos festivais e recebeu prêmios. No Cine Ceará, levou o de trilha sonora e um troféu especial do júri. Em Paulínia, ganhou melhor atriz (Claudia Abreu) e ator coadjuvante (Paes Leme). No Festival de Guadalajara, no México, recebeu o troféu de melhor fotografia, assinada por Pedro Farkas.

Há muita força nas histórias a se contar, pena que em planos de corte rápidos, típicos de uma novela, ficando entre o anacrônico e o deslocado, com poucos momentos que podem ser considerados bom cinema a qualquer tempo. Enfim, para um diretor que já ganhou o Urso de Prata, sua última obra passa com branquidão. O longa fica num meio termo, terra de ninguém: não é um filme de personagem, como era a intenção do diretor, nem um registro valioso do momento histórico importante, que o próprio diretor conheceu de perto.

Falta a Os Desafinados uma força própria, falta cores, falta o sal, o sol que poderia ser tirado com maestria da Bossa Nova tão falada, mas pouco sentida no filme. Vemos que o amor, o sorriso e a flor estão na tela, mas a melodia que os rege desafina.

CANÇÕES DE AMOR
“Ociosa juventude de tudo pervertida. Por minha virtude, eu perdi a vida.” (Rimbaud)

A cada dia que passa, situações convencem um pouco mais de que a melhor maneira de se encarar o mundo é tentar flutuar sobre as coisas, mesmo aquelas com as quais você não concorda, mesmo aquelas que você não entende, mesmo aquelas de que você não gosta muito. É mais ou menos isso que Christophe Honoré faz em Canções de Amor, musical em forma de ode ao espírito livre e à quebra das convenções.

Dividido em três atos – a partida, a ausência e o recomeço – o filme centra-se, a princípio, num triângulo amoroso entre um jovem casal liberal que aceita outra mulher na sua cama, afim de mudanças. Depois da súbita morte de sua namorada, o rapaz tenta reconstruir sua vida, ensaiando vários relacionamentos, libertando-se de padrões sexuais e amorosos, sem superar, no entanto, a tragédia recente. A forma como a família da mulher reage à sua morte mostra que nem toda perda é regada de choros histéricos, pessimismo e descrença. A morte aqui ganha cores preto-e-branco e imagens congeladas na tela – ou na memória.

O diretor constrói uma pequena história onde o amor e a sua falta se tornam combustão para os personagens. O filme lida com a morte de forma fria e objetiva, transparecendo a imprevisibilidade da vida. A história se constrói em personagens credíveis, onde os erros que fazem não as impedem de gerar empatia e apenas reforçam a sua verossimilhança com o público.

A música já tinha sido um elemento fundamental em filmes anteriores do diretor, mas as canções de amor neste longa surgem com uma relevância reforçada, uma vez que os vários momentos em que as personagens cantam são episódios essenciais para a expressão de convulsões emocionais. Embora a vertente musical seja forte, o filme não se resume, ao contrário de outros exemplos do gênero, à uma sucessão de números mais ou menos pomposos e impressionantes, sendo que suas canções aparecem sem grandes orquestrações, cantadas pelos próprios atores com naturalidade e incrível graça.

Canções de Amor investe numa sólida base dramática complementada por músicas sóbrias e melancólicas. Compostos por Alex Beaupin, os temas são interpretados pela maioria dos atores, abordando as dificuldades das relações humanas e nunca desvirtuando a atmosfera discreta e realista que domina a narrativa. Trabalha-se com um transbordamento de sentimentos que se torna quase natural ao exteriorizar-se através de canções. E assim, a música se espalha por espaços como uma cozinha de família, um parque quase vazio, e principalmente, nas ruas de Paris.

Parece claro que o filme demonstra menos a questão do realismo de seus personagens e mais suas relações com o espaço de Paris, a musa inspiradora, tratada de forma natural e extremamente atual. A beleza não está na Torre nem no Arco do Triunfo, mas nas ruas iluminadas, nos becos mal-pintados, nos cafés de ressaca. Os créditos se abrem sobre imagens documentais da cidade, e é a partir delas que se descobrem as personagens num espaço parisiense por natureza: a fila para um cinema. Presencia-se aí uma obra que, para o cineasta, só faz sentido naquela cidade.

O elenco reflete o equilíbrio de uma era francesa que inclui nomes confiáveis como Louis Garrel, um dos melhores jovens atores de hoje, já apresentado em obras francesas como Os Sonhadores, Amantes Constantes e o recente Em Paris, do mesmo Honoré.

As narrativas deste diretor expiram leveza, contando com uma realização viva e imaginativa, mas não exibicionista. O tom caloroso e o sutil olhar sobre as relações amorosas no filme, que se desdobram entre a monogamia e a poligamia, tratam a flexibilidade sexual sem qualquer tentativa de moralismo, irreverência juvenil ou choque gratuito. A diferença deste filme em relação a tantas outras obras é que, por mais que tenha uma postura extremamente política implícita, se recusa veementemente a se transformar em panfleto, seja do amor livre, do ménage a trois ou da sexualidade. As coisas acontecem naturalmente, não porque têm que acontecer, mas porque podem.

As intercalações na filmagem de situações emocionais pesadas com uma busca obsessiva pela felicidade, onde os personagens se batem uns contra os outros, ilustram um cinema que parece dizer o tempo todo que não existe maneira errada de tentar “ser feliz”. Uma generosidade de olhar, uma paixão pela realidade filtrada pelo cinema e uma crença de que, na confusão que é estar vivo em meio a outros seres humanos, só se pode acertar errando.

AMANTES CONSTANTES
“Odeio o movimento que desloca as linhas” (Baudelaire)

Quem é maior? A votação ou o eleitor? As leis ou o cidadão? O sistema ou o indivíduo? A ESPM ou você? A História ou seus personagens? Se a História é maior, nada resta se não tomar atitudes individualistas e sobreviver? Há uma derrota do abstrato pelo concreto aqui. A derrota das crenças frente às necessidades urgentes do cotidiano. A derrota da utopia da liberdade individual pela consolidação de um sistema avassalador que a todos corrompe. Amantes Constantes é um filme de 2005, em cartaz novamente pela atual mostra “1968 no cinema”, relembrando que o tempo de ontem é o tempo de hoje, e será o de amanhã.

Sem fazer nenhum tipo de agrado comercial, Amantes Constantes é realizado de uma forma que produtores e exibidores abominam: em preto-e-branco e com três horas de duração. Ambientado no emblemático ano de 1968, em plena era das revoltas estudantis pelas ruas de Paris, o filme mostra um grupo de jovens que se engaja nas lutas sociais, tomba automóveis e lança coquetéis molotov, ao mesmo tempo em que busca nas artes e no romance suas válvulas de escape.

São este jovens, artistas, anarquistas, politizados, todos contra a burguesia, que protagonizam o filme. Numa casa-república socialista, onde os jovens filosofam e decidem as suas vidas a base do ópio, do haxixe e da desilusão, vive
François, um jovem aspirante a poeta, e Lilie, escultora, que desenvolvem uma paixão e, após uma revolução derrotada, se encontram na dúvida do rumo que a vida tomará.

O filme mergulha nas entranhas do movimento de 68, mas ao contrário de muitas obras em torno do tema, concentradas nos aspectos políticos do período, vai aproximar-se da alma dos jovens revolucionários, pela tendência do amor, da poesia e do ópio. São a derrota dos ideais e a autonomia das pessoas que estão em questão.

Nesse mundo nada se vê, tudo se vive. Philippe Garrel, o diretor, não faz um filme sobre uma geração, quer na verdade estar com ela. Identificar-se com esses personagens, assumir seus nomes, sujar a mão com bombas, dividir um quarto na república de artistas, fumar ópio na escuridão. Nos encontramos numa França tão evidente quanto subterrânea, que acontece em becos escuros, telhados de prédios e interiores de quartos, como também nas ruas e praças. Somos tão amantes e tão constantes quanto todos ali, seus medos, seus erros e seus corações também são nossos.

Não há praticamente nenhuma menção a líderes revolucionários, sejam eles Marx, Engels, Rosa Luxemburgo ou Guevara. Na solidão do ato individual, sem crença no poder de uma causa ou de um partido, a ação se desenvolve num diálogo com o filme de Bertolucci, Os Sonhadores. Se este se passa quase que exclusivamente em um apartamento e na última cena os jovens vão à manifestação, Amantes Constantes dá continuidade e inversão à ação do filme anterior: o jovem que na abertura estava na passeata, caminha em direção a sua casa. Amantes Constantes começa onde Os Sonhadores termina.

A grande questão estética do filme está nos corpos. Numa das cenas mais bonitas do filme (que aliás se encontra no youtube, procurem), os personagens dançam ao som de “This Time Tomorrow” do The Kinks, numa alegria melancólica, materializando a condição humana que restou pós-revolução, algo que permanece naquele tempo e permanecerá para sempre.

A câmera e a montagem deixam de lado os espaços para se concentrarem nas pessoas. Quase não há idéia clara das locações do filme. Já os rostos dos personagens se fixam na memória. São as linhas, os traços, a pele deles que ambientam a história, e não a arquitetura. A câmera assume os riscos e os desafios de aproximar sem restritos à vivência plena, permitindo até que se contamine pelo mundo pulsante no qual está investida. A fotografia estilo Nouvelle Vague, uma nostalgia francesa, completa a busca pela essência dos protagonistas.

Não que o filme seja nostálgico, nem promova crítica filosófica ou seja objeto de estudo semiótico. Não dá lições nem tira conclusões das lombadas do tempo. Apenas não existe a figura do guerreiro com a tarefa de mudar o mundo. E é assim que o filme é encarado: não como um mero espetáculo sobre uma época, mas uma reconstituição íntima de sonhos e ideais que pouco a pouco vão se diluindo, como a fumaça escapando dos cachimbos de ópio.

François, fugindo da polícia, corre para um prédio, sobe em desespero as escadarias até o último andar e, já ouvindo o rumor dos policiais, bate a uma porta e diz: abra, sinto muito medo. De nada vale a responsabilidade política do revolucionário que deve matar em nome da causa ou do partido. Mais vale a dos princípios, a da moral individual que é a nossa autonomia. Mais vale o medo. Há uma revolta acontecendo a céu aberto, outra dentro de cada um.

NOME PRÓPRIO

O texto a seguir foi interrompido inúmeras vezes devido ao Msn, Orkut, Skype, Youtube, emails e um pouco do Google também. O texto a seguir tenta desenvolver uma crítica sobre um filme brasileiro que trata da internet e das relações humanas nela e com ela. O texto a seguir já conclui em plena introdução qual janela está aberta atrás do meu Word.

Baseado em textos autobiográficos e dois livros de ficção (Máquina de Pinball e Vida de Gato) lançados pela gaúcha Clarah Averbuck, uma das pioneiras a sair detrás de um blog famoso (atualmente adioslounge.blogspot.com) e tornar-se escritora, o filme Nome Próprio é mais uma inserção do diretor Murillo Salles no universo jovem após Seja o que Deus Quiser, de 2003.



Leandra Leal interpreta Camila, 20 e poucos anos que se muda de Brasília para São Paulo, onde mora com o namorado. Logo na primeira cena ele a expulsa de casa, por motivos dúbios que sugerem mais que traição. Intensa tanto no que escreve quanto nas suas ações, a protagonista não pensa duas vezes. Aliás, duvida-se que pense uma que seja. Evitando atividades mundanas e adultas, como um emprego fixo, ela sonha em escrever um livro. Para tanto, basta a ela viver. Suas experiências submundas e inconseqüentes servem de material para esboços de textos que não passam de diários.

Camila quer ser Bandini, angustiado escritor anti-herói dos livros de John Fante. Mas acaba tornando-se mais um Bukowski de saias, numa vida de bar em bar, de homem em homem, com parágrafos que transbordam pretensão sem a graça e a dor dos beatniks.

Os acontecimentos no decorrer de sua vida lembram filmes-teses, de personagens que se movem e falam artificialmente como marionetes para demonstrar idéias. Camila passa pela promiscuidade, pelo abuso de drogas, pela depressão, pelo transtorno familiar, pela sexualidade ambígua e por tantas outras questões psicológicas que todas juntas somam nada.

“Eu gosto do filme, mas acho que ele tirou muitos elementos importantes que estão nos meus livros. Ele escolheu fazer uma outra Camila. Um dos pilares da minha Camila é o sarcasmo, ela tira onda da própria desgraça, e a do filme só sofre, ficou um pouco chata”diz Clarah em entrevista à Folha. Ela, a autora, não é Camila, a protagonista. O roteiro foi finalizado por Salles, Elena Soarez e Melanie Dimantas. Clarah não teve envolvimento, servindo apenas de inspiração e venda dos direitos da personagem Camila criada nos livros.

O blog de Camila é visitado assiduamente. Ela têm fãs que sabem detalhes da sua noite passada ao atualizar a página. A deixa está em uma questão quase invisível, já que recente demais. O filme se passa na virada dos anos 90 para os 2000, quando os blogs (e a internet como um todo) mudaram as relações humanas e suas representações. Tal referência é, por exemplo, assistida nas cenas fechadas da personagem em casa. Naqueles anos, e talvez ainda hoje, para ganhar a liberdade virtual se perdia a real, num confinamento resumido entre o computador, você e seu quarto.

Outro elemento que constrói o filme fazendo-o funcionar como um todo é a maneira como que a história é contada, inspirada no mundo virtual. “Está se formatando uma nova maneira de narrar. O filme é sobre narração, que é a questão que a internet traz, com as soluções incríveis que as pessoas estão adotando para se expressar, se individualizar”, diz Salles em entrevista à Folha. Diário, álbum de fotos e perfil preenchidos de maneira a publicar uma imagem ideal não deixam de tentar comunicar algo escasso na sociedade, o valor de ser único.

O filme possui um esforço literalmente visível para se mostrar antenado. Os quartos e os planos fechados, as letras que invadem a tela na medida em que Camila as escreve, a filmagem com câmera digital na mão, a fotografa fria e claustrofóbica. Tudo indica que Salles entende que a imagem fala por si. Porém, o tamanho esforço gera um ar forçado, num texto que envelheceu e gerou fragilidades. Um amontoado de frases feitas tentam misturar vestígios de uma cultura underground, numa visão de mundo pré-adolescente que confunde palavrão com metalinguagem. O discurso parece preso em frases de efeito que depois de pensadas vinte vezes, carregam significados extras e desnecessários. E, sob o pretexto de que não ter pudor é moderno, o sexo é banalizado. A vida, enfim, vira uma poesia cansativa.

Talvez o espectador se irrite. Talvez ele sinta que “nada acontece aqui”. Mas isto só relembra que o cinema também mostra os fatos ordinários da vida, e não apenas os extraordinários (assim como os diários, virtuais ou não). Seqüências assim criam o equilíbrio necessário para que recursos criticados como a narração em “off” dos pensamentos e a representação gráfica destes (que pulam literalmente pela tela) sejam usados à exaustão.

Nome Próprio rendeu recentemente os prêmios de melhor filme, melhor atriz e melhor direção de arte no Festival de Gramado. Salles sabe trabalhar com o visual e suas representações, apesar de, neste caso, sacrificar diálogos, leveza e humor. É visível o desejo do diretor em fazer um estudo do desespero juvenil contemporâneo. É a era da internet, quer dizer, é o tempo em que a obsessão em comunicar-se apenas camufla o fato de que nunca as pessoas foram tão isoladas em si mesmas.

O MISTÉRIO DO SAMBA
“Dança que tá na roda, roda de brincar. Prosa na boca do tempo e vem marear”

Mistério, rígido, não há. O que se descobre aqui é entender por que quem não gosta de samba é doente do pé.

Alguns críticos afirmaram que O Mistério do Samba seria a resposta brasileira ao Buena Vista Social Club (1999), de Wim Wenders, que explorou factual e comercialmente o tesouro musical de uma certa geração de artistas cubanos. Curiosamente, há de fato semelhanças. O documentário de Carol Jabor e Lula Buarque de Holanda também apoia-se numa estrela, Marisa Monte, que, como o músico americano Ry Cooder no filme de Wenders, saúda o passado ao apresentar nomes importantes da música, num retrato simples e poético da chamada Velha Guarda da Portela.

O filme foi feito em dez anos, desde 1998, quando Marisa Monte resolveu resgatar sambas esquecidos para seu disco “Tudo Azul”, remexendo nos baús da comunidade à cata de sambas que só haviam sido registrados em gravações caseiras. Mas se o disco serviu para eternizar a arte dos portelenses, o documentário se esforça em retratar, mais que a história da escola, os casos e seus personagens. Ver Marisa Monte abrindo uma fita cassette cheia de papéizinhos que sugerem segredos da MPB ainda desconhecidos revela o tipo de riqueza de artistas que compuseram músicas celebradas no filme

Inicialmente, a presença de Marisa Monte aparenta certo desconforto. De óculos escuros e um tanto ciente demais da presença da câmera, há um misto incerto de entrevistadora, apresentadora e admiradora. Numa cena questionável, ela não apenas junta-se a toda a velha guarda, mas parece ficar com o melhor e mais potente microfone, sua voz soberana sobre a de todas as outras estrelas. Se por um lado, é selada a união do clássico com o moderno, por outro nossa guia vira rainha num lugar já repleto de realeza.

O filme cresce quando personagens descobertos ganham voz, seja falada ou, especialmente, cantada. Zeca Pagodinho e Paulinho da Viola falam, mas são os compositores desconhecidos que revolucionam. Estes, já idosos, homens e mulheres, que viveram suas vidas como artistas iluminados na Portela, mas que na rotina diária ganharam a vida como pintores, operários da construção civil e especialistas em refrigeração.

A percepção de que boa parte desses artistas teve vida operária, distante dos royalties e dos luxos das gravadoras, parece levar o Mistério do Samba a um saudosismo, aspecto de um documentário que, de certa forma, é também sobre ser velho e viver com as glórias do passado. O papel das mulheres ganha interessante observação, numa época em que elas tinham a permissão de, basicamente, cozinhar e serem musas.

Durante seus 88 minutos, o longa faz com que a platéia adentre pela porta da frente no cotidiano da comunidade da agremiação carnavalesca da Portela. Enquanto os personagens surgem com seus casos pitorescos e histórias de sambas do passado, há um clima de melancolia no ar. “Não sei se a palavra é melancolia, mas é fato que eles são saudosos. O cara é da Velha Guarda da Portela: ele é velho, tem uma estrada de vida longa, sofrida, cheia de dificuldades e de decepções. Tem sofrimento, sim, até pela proximidade da morte, que deve mexer muito com eles; mas, sem tristeza não tem samba bom”, diz Carolina Jabor à Folha Online.

Numa era em que o som digital é vendido como acessório de ostentação do cinema, o som dos filme muitas vezes soa como demonstração de resistência para tímpanos. É prazeroso ouvir um filme brasileiro pequeno como este, onde a boa qualidade não está a serviço de explosões, mas de uma música que faz a sala vibrar com vozes, cuícas e cavaquinhos que lhe cercam de todos os lados numa sinfonia brasileira. E, como o filme em si, tudo flui de maneira prosaica.

Em um país com registro tão falho das épocas de ouro da sua cultura popular, pode-se dizer que O Mistério do Samba já nasce filme dos mais importantes. E, ao ver a roda de samba registrada na última cena, com os membros da Velha Guarda dançando o miudinho com a idade avançada, entende-se todo o mistério que o samba tem.

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro

“São casas simples com cadeiras na calçada e na fachada escrito encima que é um lar” (Chico Buarque)

Somos todos produtos de um época. Sofremos todos influencias pelo meio em que vivemos. Necessitamos todos nos diferir do próximo. Lutamos todos como um guerreiro ou com maldade. Estamos todos entre o santo e o dragão.

Assim como a sociedade, um filme também reflete sua época. Nos anos 60, o Cinema Novo fazia parte da efervescência cultural brasileira que logo seria dissolvida pelo acirramento da repressão militar. Nas ousadas produções estava estampada a vontade de revolução. Glauber Rocha estava à frente, como contador do que era, de fato, o Brasil. Mais de três décadas depois da destruição dos negativos de um dos seus filmes mais discutidos mundialmente, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, agora reestréia em cópia restaurada no cinemas.

Tudo gira em torno de personagens de uma pequena cidade nordestina. Ao surgir um cangaceiro que se diz reencarnação de Lampião, o jagunço Antonio das Mortes (de aparição no filme anterior do diretor, Deus e o Diabo na Terra do Sol) parte para conhecê-lo e matá-lo. Relembrando uma aula de História, os cangaceiros eram os homens do povo, enquanto os jagunços, poderosos, faziam suas próprias leis ao ignorar a vontade da comunidade. Glauber procura incorporar aspectos da cultura popular brasileira, transportando para a tela tipos característicos do sertão nordestino.

Há o coronel cego da vista e da miséria que cerca a todos, símbolo da imposição de pobreza e subdesenvolvimento da região. Ao lado, o egoísmo e a crueldade se materializam em um personagem jovem capitalista, credor da ditadura. Em confronto, um professor da esquerda luta contra sua impossibilidade de agir. O povo é composto por uma massa de famintos, entregue ao misticismo religioso e a crença no poder vingador e revolucionário dos cangaceiros. Estes são a promessa de redenção da sociedade sertaneja, calcada pela violência de resistir à exclusão do sertão. São todos personagens gerados e criados pelo meio em que vivem, com seus próprios códigos de conduta, crenças e misticismo particular.

Antonio das Mortes, o jagunço, retém a energia principal do longa. Ao matar o cangaceiro que tanto pretendia, lhe espasma um despertar de consciência que reverte sua ideologia: a realidade de sofrimento do sertão finalmente lhe ocorre. A dor do cangaceiro morto, bem como a de toda a comunidade pela qual ele lutou, faz o jagunço entrar em processo de culpa e remorso. Depois de assassinar mais de cem cangaceiros e estar na luta do lado dos ricos, o jagunço decide usar a mesma violência que sempre regeu suas ações para impor o que começa a acreditar como certo, se unindo ao povo contra um inimigo comum: o latifundiário explorador. Ao concluir essa nova cruzada, entretanto, o jagunço sai de cena com a mesma amargura de sempre, eternamente preso à brutalidade que o alimenta e o cerca. Não parece haver redenção possível para ele.

Os nordestinos são segurados na Terra pela fé. Num dialogo entre mito e inconsciente, são criadas parábolas através de imagens muitas vezes barrocas. O cineasta contrapõe aspectos míticos e metafísicos em meio à religiosidade, fantasias e delírios, em contato direto com o cotidiano. A fotografia de Affonso Beato potencializa esse cenário, no qual prevalece uma luz que inunda o espaço de uma intensa claridade, sufocando os personagens num ambiente seco e poeirento. Uma idéia de movimento constante é maximizada a partir da câmera na mão e da simultaneidade de ações no enquadramento da tela, antagonizando o real e o sonho.

Numa história que sinaliza o bem e o mal, a luta entre santos e dragões não tem vencedor. O Dragão é inicialmente o jagunço, assim como o Santo Guerreiro é o cangaceiro. Porém, as visões de mundo se desenvolvem e mudam. Não há mais lados fixos a defender, as armas são de quem pegar. “Em suma, queria dizer que tais papéis sociais não são eternos e imóveis, e que tais componentes de agrupamentos sociais solidamente conservadores, ou reacionários, ou cúmplices do poder, podem mudar e contribuir para mudar. Basta que entendam onde está o verdadeiro dragão”, palavras de Glauber.

E onde está o Dragão da Maldade hoje? A época atual mostra uma realidade um tanto mais complexa do que a exposta simbolicamente por Glauber Rocha. Para ele, o latifundiário é o explorador, havendo um inimigo assumido. Atualmente, não existem mais representantes simbólicos. Não há inimigo visível. O Dragão está diluído entre todos, fortemente influenciados pelas circunstâncias do meio. Mais do que isso, todos também são Santos Guerreiros.

NÃO ESTOU LÁ
“O poeta é um fingidor”

Quem você realmente é? Um x, um força-espm, um refugiado da B.A., um sem-amigos, todos ou nenhum? Não indague. Já sabemos o que são máscaras e a diferença entre a arte de fazer social na faculdade, e a consciência que está aí dentro, sufocada por tentar parecer normal e moral. Não, moral não precisa ser normal, nem normal precisa ser moral. Assim como Alex, de Laranja Mecânica, grande tema da vez do jornal, você pode ser alguém em prol de seus desejos, passando por cima de qualquer deus que se intitule Deus, ou um preso e submisso às leis ou até, quem sabe, pode ser quem mantém seus desejos aflorados e reais, porém sabe manipulá-los e escondê-los quando preciso, rasurando o i do imoral uma vez ou outra.

E Bob Dylan, onde está? Não estou tentando inventar que o Alex retratado acima ouvia Dylan no lugar de Beethoven enquanto ousava da ultraviolência, nem que o próprio Dylan se inspirou em Fernando Pessoa e suas pessoas para escrever tanta música diferente em tantas fases da vida pelas quais passou. Porém, sim, Bob Dylan, como retrata sua mais nova quase biografia audiovisual, Não Estou Lá, foi muitos personagens em um só homem, assim como todos nós.

Caracterizando Dylan, o filme não tem formato convencional. O diretor Todd Haynes, que já tinha rodado biografias de David Bowie e Lou Reed, baseou-se em lendas por trás do mito para contar, reescrever e criticar fatos marcantes da vida do artista. Terá este sido um poeta, um pastor ou um revolucionário? O filme constrói um mosaico contraditório, escalando um ator diferente para viver cada passagem excepcional da vida do cantor, personagens que, de fato, são facetas da mesma personalidade ao longo dos anos.

O primeiro fragmento do artista é um guitarrista prodígio de onze anos, situado no início de carreira, um menino devoto da música folk e seguidor de um conselho que lhe cai bem: viver seu próprio tempo, cantar sobre sua época. Em seguida, é apresentado o segundo Dylan, um defensor dos direitos civis e catalogado como um cantor de músicas de protesto, participando de discursos revolucionários e escrevendo diversos clássicos que inspiraram uma geração. Ao mesmo tempo, há cenas intercaladas de um terceiro Dylan, o poeta. As imagens são capturadas em close, provocando intimidade e reflexão.

O quarto Dylan representa os flertes do cantor com o cinema, em filmes e documentários que deram errado nas bilheterias por culpa de suas propostas artísticas. Ao mesmo tempo, é protagonizado o lado caseiro de Dylan, sua vontade de ter uma família, através do dia-a-dia do compositor longe dos shows.

Encontra-se também o Dylan que rompe com a música folk em detrimento do rock, usando uma guitarra elétrica acompanhada de uma banda. E o sugerido pastor, passagem em que o cantor converteu-se à religião católica.

Todos esse segmentos nomeados alter-egos de Dylan utilizam diversos recursos da linguagem cinematográfica para tornar visível as metáforas de sua vida, investindo numa lógica visual. Slides, preto e branco, granulado e edição com ritmo de acordo com cada encenação. São usadas abordagens diferenciadas em cada fragmento também, desde documentaristas, tradicionais até surrealistas, com tais escolhas estéticas que facilitam a apresentação e entendimento das faces do cantor. Dylan se reinventou tantas vezes e de forma tão absoluta que há dificuldade em reconhecer sua voz e estilo de uma canção para outra, o que traz uma lógica perfeita nesta obra.

Entretanto, é pretensioso supor a compreensão de um indivíduo simplesmente através de fatos marcantes de sua vida. O próprio Dylan explorou ao longo de sua carreira a recusa em ser rotulado por quem quer que seja. E é por isso que o filme visa apenas tornar lúcido o que estava acontecendo no interior do artista.

Há uma facilidade na auto-identificação dos mil mundos ilustrados no filme contidos no mesmo universo particular. Que poeta aqui, entre nós, não é um fingidor?

Pode-se saber quem Dylan é. Pode-se saber quem cada indivíduo é. Mas nunca realmente se conhece. Não Estou Lá é, enfim, uma cinebiografia atípica. E, justamente por isso, é extremamente fiel ao espírito do seu biografado. Uma personalidade contraditória que se reflete até mesmo no título do filme, em que ele está lá, sim, em cada quadro de sua vida. Mas, saber que ali se encontra não diz quem ele é. Afinal, saber que você, caro leitor, estuda na ESPM, diz de fato quem você realmente é?

PARANOID PARK

“Ninguém está preparado para Paranoid Park”, diz um personagem do filme. E poucos para Gus Van Sant. Um diretor que não funciona sem seus filmes, e nem seus filmes sem sua direção. Uma carreira que passa por filmes alternativos de início de carreira à redenções hollywoodianas de filmes comerciais. Mas que, atualmente, vem flertando com o espírito independente, numa paixão intensa pelo visual.

Focando tanto no tema quanto na forma, Van Sant tem a virtude de empacotar a alienação juvenil e o pensamento niilista, resultando em olhares vazios, caminhadas por longos corredores, cenas desfocadas, uma certa desconexão entre imagem e som, cenas que se repetem, ações num fluxo sempre interrompido e um discurso mais visual do que verbal. Os fatos chegam a ser um fardo. O que interessa é o estado do personagem. Em Elefante (200?), obra um tanto quanto conhecida e premiada, comunica-se não haver explicação simples e linear para um massacre como o de Columbine (o tiroteio numa escola americana); o caso, como a vida, é cheio de motivos e fatos que se complementam, de pontos de vista. Ali, é explorada uma tragédia de grandes proporções. Em seu filme mais recente Paranoid Park, contudo, o diretor busca explorar uma tragédia de nível pessoal, com resultado não menos devastador.

Com o roteiro baseado no romance homônimo de Blake Nelson, Paranoid Park emprega atores desconhecidos, incluindo muitos que nunca antes haviam atuado. Para escolher os atores, foram afixados cartazes em lojas de música e usados anúncios no site MySpace e em jornais locais. “Gosto realmente de trabalhar com atores não profissionais porque desse modo experimento coisas que são naturais para eles e filmo esse lado deles, em lugar de começar a criar do nada”, disse Van Sant. Aparentemente numa proposta minimalista, o diretor busca em todas as variáveis uma poesia de indiferença, introspecção e iniciação na vida.

O parque do título é um lugar onde os skatistas se encontram, na cidade de Portland. Embora seja apaixonado pelo skate, Alex é inseguro de suas habilidades, o que eleva Paranoid Park a um patamar quase mítico, inatingível para ele, que passa horas apenas observando outros mais experientes. Deslocado em seu próprio mundo, em sua escola, em seu pequeno círculo de amigos e em sua família, Alex não se encontra nem mesmo sozinho. Nem em seus fúteis encontros com a namorada ele é capaz de se conectar verdadeiramente. Em uma noite nas redondezas da pista de skate, acaba acidentalmente assassinando um segurança, seguindo com culpa e perturbação.

Mas não é na trama que está o principal de Paranoid Park, e sim na essência do seu protagonista e naquilo que se esconde por trás do seu olhar, que tanto capta o desencanto do mundo dos adultos à sua volta como o fascínio pela comunidade de skatistas libertinos. Grande parte do filme se desenvolve nessas pistas de skate, na vida morna e nihilista do protagonista e de todos seus colegas, semelhantes em aparência e em estilo de vida. Eles falam, com a mesma intensidade, sobre os planos para o fim-de-semana e sobre a guerra do Iraque. Nada de fato desperta paixão nestas pessoas.

Ao mesmo tempo em que Alex encara a culpa e o medo por ter cometido um acidente fatal, este ato desencadeia uma série de conflitos morais internos. Na busca dessa reflexão, o cineasta usa uma narrativa fragmentada em que passado e presente se misturam. A opção por montar as cenas fora de uma ordem cronológica faz com que Paranoid Park mergulhe no estado de espírito de Alex, como se fossem contados seguindo o fluxo de consciência do personagem, ao invés de esclarecer fatos ou simplesmente contar uma história. Pois a preocupação não é solucionar o crime, mas sim apresentar como a juventude está desconectada da realidade e à procura de algo que os prenda.

Os skatistas no filme são uma forma de metáfora sobre a falta de comunicação, mesmo em um ambiente eufórico. Eles estão reunidos, mas não há diálogos, estes são substituídos por imagens que capturam um estilo de vida. O único complemento é uma narração feita por Alex para ilustrar seu diário sobre os acontecimentos.

Não há moralidade no filme de Gus Van Sant. Não há bons ou maus, não há castigo, não há mesmo tentativa de justificação, da morte, da vida, da apatia ou da angústia. É um mundo dominado pela necessidade absoluta da aparência e da comunicação, onde fica difícil encontrar uma redenção.

Essas intenções visuais são possíveis tecnicamente através do trabalho de fotografia de Christopher Doyle. São longas tomadas em que a câmera flutua em volta dos atores e também mostra inúmeros ângulos enquanto andam de skate. Van Sant ainda trabalha com cores, ritmos e o slow motion como forma decapturar o drama e a emoção. A trilha sonora passeia por vários estilos, desde de meros barulhos, à música clássica até canções inéditas de Elliot Smith. Em algumas cenas as canções mudam em segundos na mesma cena, ilustrado a influência do iPod nos jovens de hoje. De certa forma, podemos ver Paranoid Park como um filme de silêncios, de olhares, de sensações. E o papel dessas “interferências visuais” é enorme na obra, de modo a afastá-la do realismo para mergulhar inteiramente na psicologia do personagem.

Gus Van Sant não julga, porém explora estados emocionais e como esses afetam a vida das pessoas e o mundo ao seu redor.

JUNO
“A vida encarada com um humor inteligente e incomum”

A todos que estão folheando estas páginas e principalmente aos bixos, boas vindas. Não se preocupem em se sentirem perdidos, o entrosamento se dá aos poucos, o bar é logo ali. E àqueles que se prenderam, ou perderam, nestas linhas, vamos falar de cinema.

Ninguém é receptivo ao constante moralismo dos filmes atuais quando entra numa sala de cinema. Muito menos aos temas encarados sem originalidade, personagens estereotipados e a habitual sensação de já ter visto aquela cena. Numa ocasião ou outra, surge tal filme favorito de críticos não-vendidos, jurados de um festival pouco conhecido, jovens cineastas, artistas desconhecidos ou até universitários com senso semiótico (seguidores do professor Joca, que se tornará assunto em breve aos bixos de CSOS com a matéria Teoria da Comunicação).

Abrangendo um tema tão batido como gravidez na adolescência, está Juno. Contornando muitos do gênero, é um filme que traz originalidade, equilibrando-se entre a ironia e o sensível. Uma verdadeira figura em meio aos dramalhões atuais. Dando nome ao filme, a personagem principal Juno tem 16 anos e se descobre grávida de sua única e memorável relação com Bleeker, melhor amigo. Ela tem uma maneira peculiar de ser. Seu jeito de manejar e disparar palavras traz um carisma e uma risada especial. De início, a resposta à gravidez parece óbvia, uma clínica de aborto. Mas após uma conversa surreal, descobre que seu bebê já tem unhas, e decide não tirá-lo. Com a ajuda da melhor amiga, procura em meio aos anúncios de jornal na seção de pais adotivos um casal ideal. Juno encontra nos Loring, jovem casal bem de vida, uma solução para o bebê. Resta, então, esperar pelos meses que lhe sobram com tamanha barriga.

Com muita excentricidade no caminho, como a reação do pai e da madrasta ao receberem a notícia da gravidez da filha, o filme segue uma linha marcada por detalhes sem obviedades, tratando da aceitação das pessoas do jeito que elas são. Dando consistência à falta de maturidade de Juno, sem julgá-la ou diminuir seus dramas, o longa em si fala sozinho. A entrada em forma de desenho animado, a divisão da história em estações do ano salientadas por suas cores, os diálogos, os silêncios, a trilha sonora escolhida a dedo e as grandes atuações dão chão a muitos prêmios (como as quatro indicações ao Oscar).

Dirigido por Jason Reitman, também do filme Obrigado por Fumar (2005), se consagra aqui. O roteiro é da estreante Diablo Cody, ex-stripper e autora de um livro autobiográfico. A princípio, foi questionado se a assinatura do roteiro por ela não seria uma estratégia de marketing para atrair curiosidade a uma produção barata e sem custo para publicidade. Porém, do contrário da vulgaridade esperada, Juno oferece uma visão e um jeito de lidar com problemas que ultrapassam os clichês da comédia americana ou drama familiar. O jeito seco e sem melodrama dos personagens, com a coragem de provocar expectativas nos espectadores e frustrá-los depois, completa um mundo que não é certo, muito menos um conto de fadas.

De uma diversão inteligente, sua sátira também está na sociedade americana e sua divisão em tribos, como na escola. Bleeker, o namorado de ocasião e melhor amigo de Juno, é um atleta. Porém, ironicamente, o ator que o interpreta é o próprio anti-atleta, feinho e magricela, o que garante gargalhadas. Uma das melhores piadas é totalmente visual: o time de corrida da escola, que insiste em passar por trás ou pela frente da câmera a todo instante, humorizando o papel excessivo e popular dos esportes nas escolas americanas.

Também recheado de referências da cultura pop, Juno não deixa nenhum leigo perdido. Cada piada, cada citação, cada música é colocada de maneira tão simples que todos entendem. O pop não está apenas nos diálogos, mas nas cores da fotografia e no figurino. É m filme urbano, mas desafiador tanto em sua linguagem quanto em seu visual.

Juno sofreu comparações com Pequena Miss Sunshine (2006) pelo título de filme independente do momento, que surge modestamente e por fim, agarra a fama. É um daqueles filmes que parecem feitos num molde de longas modernos de baixo orçamento. Estão presentes a adolescência como tema, a família desajustada, o humor irônico, o texto rápido, as referências pop e a trilha, lotada de bandas consagradas num cenário pouco popular. A fórmula exata para um filme independente candidato a cult. E mais, como já dito, o roteiro é escrito por uma ex-stripper. Mais cool, impossível. Porém, essa imagem que se dá ao filme é apagada depois dos primeiros minutos de projeção. Embora os elementos da forma continuem lá, Juno vai muito além disso. Seu texto passa por todos os clichês do cinema independente raspando, mas quase sempre sai ileso, demonstrando soluções ora inteligentes ora encantadoras.
De perto, percebe-se que o estereótipo não está ali. Apesar do tema superexplorado, adolescentes nunca vão deixar de ser assunto, principalmente pela sua imprevisibilidade dentro do previsto. “Tem algo na voz deles, tem uma maturidade que está presa na inocência”, diz o diretor Reitman em entrevista ao site do filme. Emoções que rendem muitos longas, principalmente num mercado aberto para um gênero em consolidação. São filmes sem grandes compromissos, mas não menos importantes.